Amigos para sempre

Nossa amizade aconteceu de maneira inusitada. Como todos sabem, atuando como síndico há 15 anos, sempre que posso receber um novo morador nos blocos que administro, eu o faço. Era sábado de um desses anos, perto da hora do almoço. Tinha levado minha cachorra Jade (in memorian), para o seu segundo passeio do dia.

Animado porque estava um lindo dia de sol, ao encaminhar à portaria da minha prumada, observei uma pessoa nova, carregando objetos com dificuldade, denotando que ele estava se mudando. Como não a conhecia, entendi que estivesse chegando.

É importante o síndico buscar se aproximar do morador. Saber quem é, de onde vem, onde morava, se em casa ou apartamento. Apurar, mesmo que superficialmente, o que provocou tal mudança etc. E digo mais: o quanto antes essa aproximação ocorrer, melhor para todos. O síndico precisa saber como abordar o morador; o que pensa; como age; o que sente, para que a sua mensagem seja entendida de maneira plena, a fim de evitar ruídos na futura comunicação.

A fim de buscar maior interação, fiz um mero comentário sobre como é difícil “o dia da mudança”. Dessa rápida abordagem, esperava verificar se a resposta seria curta (normalmente concedida por aqueles que não gostam muito de falar, seja por timidez, inibição ou que simplesmente não gostam de interagir) ou longa (vinda das pessoas mais abertas, mais leves, mais expansivas e desinibidas).

Não me identifiquei como síndico e a resposta veio, em tom agressivo, com as seguintes palavras: “Pior é morar em um prédio cheio de cães”.  Sem ao menos me conhecer ou a minha “filha” (muitas pessoas hoje cuidam de seus pets como membros próximos da família), um Sharpei, cachorro de porte médio (aquele da cara toda enrugadinha), cuja principal característica da raça é praticamente não latir ou emitir qualquer tipo de ruído.

Fiquei sem qualquer ação! O que fazer? Respondo? Devolvo à altura? Desconverso? Faço que não entendi? Ignoro? Pensei rápido e decidi, naquele momento, ignorar suas palavras. Abri a portaria com a minha digital e fui para o meu apartamento um tanto quanto constrangido.

Dias depois, como já esperava, já que o apartamento do novo morador se situava na mesma prumada do meu, acabei encontrando no elevador, com o novo morador, sem Jade.

Cumprimentei-o e puxei uma conversa qualquer. Não tocamos no assunto do dia em que nos conhecemos. Despedimo-nos e tocamos a vida. Adotei essa postura sempre que nos encontrávamos. Óbvio que quando eu já estava no elevador de serviços com a minha cachorra e nos encontrávamos, ele não entrava na cabina. Da mesma forma ocorria se ele já estivesse dentro – eu não entrava.

Meses se passaram e um dia esse morador interfonou para a minha unidade. Perguntei sobre como poderia ajudá-lo e ele me informou que tinha ouvido um pinga-pinga, lento, mas constante, dentro dos elevadores, social e de serviços da nossa prumada. Respondi-lhe que iria averiguar e nos despedimos. Acionei a empresa responsável pela manutenção dos elevadores e ficou constatado que o fosso do elevador estava inundado de água. O morador tinha uma audição privilegiada. Problema resolvido e entrei em contato com o morador para dar um feedback do ocorrido além de agradecer-lhe a colaboração.

Mais algum tempo, em um dos passeios de Jade, o morador não se esquivou da cachorra que estava comigo no elevador e resolveu entrar na cabina. Jade tinha sido adestrada. Sentada estava, sentada permaneceu, sem nenhum comando adicional para que isso ocorresse.  Seu comentário foi que a cachorra era bastante educada! Daquele momento pra frente, quando nos encontrávamos, ele aproveitava a “carona”.  

Esse morador, sempre que possível, me ajudava na administração do condomínio. No entanto, em todas as assembleias realizadas, ele jamais compareceu. Passados pelo menos uns dois anos da sua chegada, em uma dessas assembleias, na última fileira, estava aquele morador. Estranhei de imediato pela presença inédita. Durante a reunião, o morador não se manifestou em nada. Nenhum comentário! Nenhuma conversa paralela! Nada! Ao finalizarmos a reunião e agradecer a presença de todos, ele pediu a palavra, que foi concedida de imediato pelo presidente da mesa, solicitando também que seu pronunciamento fosse registado em ata.

O morador contou aos presentes sobre como nos conhecemos, dando ênfase ao ataque desproporcional que ele havia desferido contra mim e a minha pet. Elogiou sobremaneira a minha administração e principalmente sobre a condução do problema causado por ele próprio, pelo constrangimento causado à minha pessoa, e pela imparcialidade entre o ocorrido e do excelente tratamento que eu o havia dispensado.

Para encerrar, pediu que fosse registrado em ata seu pedido de desculpas, informando ainda que iria se mudar nos próximos dias. Acompanhei sua mudança dias após.

Apenas para refletir: em situações como esta, a meu ver, o síndico deve manter a cabeça fria, relevando as palavras mais duras, em prol de um convívio mais harmonioso. Entendendo que algumas vezes não acordamos bem, que encontramo-nos quase sempre sob pressão familiar, profissional ou mesmo que a própria vida nos impõe, (não que isso seja um álibi para agir sem cordialidade, respeito e gentileza), mas muitas vezes por impulso ou inconscientemente, atacamos o primeiro que encontramos à frente. Qualquer reação da minha parte, que pudesse ser interpretada negativamente, naquela altura do campeonato, seria como jogar gasolina em incêndio em andamento. Ou seja, mantenha sempre o controle da situação e não se deixe levar pelas emoções.

Não nos falamos mais e nem nos encontramos pela vida. Fiquei bastante agradecido pelos elogios, principalmente ao relevante pedido de desculpas públicas. Apesar da distância, nos tornamos “Amigos para sempre”.


Raphael Rios | Síndico profissional (61) 98115 6489 raphael_rios@uol.com.br